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Lançamento | 150 Anos da Lei do Ventre Livre


Sobre o Bloco

“Corpos negros, nascidos, são livres ainda hoje?” Diego Mouro

A arte traz duas crianças negras brincando como o ápice simbólico da liberdade. Elas sorriem, saltam, quase como se voassem livres. Os lençóis e os varais presentes na obra figuram como elementos simbólicos, remetendo ao resgaste dos afetos criados no interior das famílias. O artista se insere nessa lembrança nostálgica, através da figura de sua avó e no afeto que ela colocava no trato com as roupas. As camadas sobrepostas das peças no varal se conectam a este lugar da memória, a esses afetos familiares que se constroem e que, de alguma forma, protegem e prezam por essas vidas e liberdades. Todavia, essa ideia de construção afetiva de família é também atravessada pela ameaça constante às vidas negras, exercida por um estado que insiste em mantê-las prisioneiras de estigmas e encarcera-las continuamente. Por isso, uma sombra ameaçadora se insinua atrás dos lençóis, representando os diversos braços institucionais que mantém essas vidas vigiadas, reféns do medo e da lembrança de que liberdade não é algo definitivo para a população negra brasileira. A imagem problematiza, desse modo, a celebração dos 150 anos da Lei do Ventre Livre. Enquanto os selos exaltam a liberdade, os sorrisos e a beleza no cotidiano nas vidas negras, o bloco propõe uma reflexão sobre o significado e valor da liberdade no Brasil.


A Lei do Ventre Livre, 1871

“Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da nação, e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daqueles filhos menores e sob a libertação anual de escravos”.

(Ementa da lei n. 2040, de 28 de setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre)

Há 150 anos, no dia 28 de setembro de 1871, era promulgada a Lei 2.040 que declarava condição livre aos filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir de então, tornando-se conhecida como Lei do Ventre Livre ou Lei Rio Branco. Embora sua aprovação tenha resultado de um processo moroso, costurado por meio de uma série de debates e embates políticos que seguiram, muitas vezes, por vias tortuosas, a Lei do Ventre Livre desencadeou um processo inexorável em direção à liberdade e foi significativa sob vários aspectos. No entanto, as negociações e o jogo político que prepararam o terreno para sua promulgação, em 1871, começaram algumas décadas antes.

As elites políticas e econômicas brasileiras prolongaram ao máximo a escravidão no país, estendendo o processo de emancipação de mulheres, homens e crianças escravizados por boa parte da segunda metade do século XIX. Iniciado em 1850, com a promulgação da Lei Eusébio de Queirós, proibindo a entrada de africanos escravizados no Brasil, este processo levou quase 40 anos até a abolição total da escravidão, em 1888, precedida pela Lei dos Sexagenários, de 1885, que determinava a libertação dos escravizados com mais de 60 anos.

O caminho para emancipação foi sinuoso e alternou, por vezes, avanços legislativos moderados com recuos e muita resistência. Exemplo disso foram as tentativas mal logradas de promoção da “liberdade do ventre” encabeçadas por alguns parlamentares, ainda nos anos 1850 e, sobretudo, na década seguinte. Apesar de tais iniciativas, a Lei do Ventre Livre, segunda lei abolicionista, só foi promulgada 21 anos após a extinção do comércio de africanos. Ela tomou forma ao longo de uma sucessão de debates na segunda metade do século XIX, período marcado por intensas mudanças políticas, econômicas e sociais no país e pelo avanço das discussões sobre a questão abolicionista no cenário internacional. Muitos desses embates calorosos em torno da querela liberdade versus propriedade na época foram desencadeados ou intensificados pela pressão exercida pelo governo britânico, cuja política externa autoritária era investida de objetivos estratégicos de ordem econômica.

Quando a Lei do Ventre Livre foi aprovada, a extinção da escravidão ainda era algo abstrato para uma nação como o Brasil, com uma economia estruturalmente baseada no trabalho escravo. Em termos concretos, essa lei determinava que os filhos de mulheres escravizadas, que nascessem a partir da data de sua promulgação, permaneceriam sob a autoridade daqueles que exploravam suas mães até completarem 8 anos de idade. A partir de então, este proprietário poderia escolher entre manter a criança até os 21 anos, utilizando seus serviços, com a condição de não a submeter a castigos excessivos, ou entregá-la ao Estado, recebendo uma indenização em troca.

A inauguração deste novo status cívico das filhas e filhos de mulheres negras escravizadas explicitava as margens entre a escravidão e a liberdade. Paradoxalmente, os nascituros de escravizadas de “ventre livre” não herdariam a escravidão, mas dificilmente seriam considerados “livres” em sua plenitude.

Essa metáfora do “ventre livre”, da liberdade gerida no útero da mulher escravizada, cujos corpos ainda eram atribuídos a condição de mercadoria, revela a mera formalidade do discurso de “liberdade” oriundo das determinações estabelecidas em lei. Promulgar uma suposta liberdade aos ventres de mulheres negras configurava uma estratégia de manutenção da ordem política e econômica sob o Império Brasileiro que, por meio de um emancipacionismo gradual, atendia aos desígnios de um de seus principais investidores externos, a Inglaterra, e diluía a insatisfação das elites escravocratas locais.

A intenção não era, pois, abdicar imediatamente e de maneira irrestrita do direito de propriedade garantido em lei, já que a escravidão de corpos negros permanecia uma prática legalizada no Brasil e amplamente disseminada no tecido social.

Esse modelo de emancipação lenta e gradual da escravidão embasou a elaboração das leis que, a exemplo da Lei do Ventre Livre, promoveram e, paradoxalmente, adiaram a extinção da instituição no país, gerando diferentes interpretações sobre suas motivações, assim como seus limites. Como consequência, nos anos seguintes à sua promulgação, os críticos do gradualismo interpretaram a Lei como uma forma de assegurar aos proprietários a manutenção da escravidão ou de garantir e legitimar a escravização de crianças nascidas de tais “ventres livres”, forjando uma memória que a esvaziava e a destituía de seus significados.

No entanto, os embates parlamentares que a precederam, assim como aqueles que abolicionistas e escravistas travavam também fora do Parlamento e a resistência dos poderosos à sua promulgação, revelam que a libertação do ventre das mulheres escravizadas condenava a instituição escravocrata a um fim, ainda que não imediato. Ela também contrariava os interesses das elites rurais, que concentraram a posse dos escravizados após a interdição do tráfico. Esse novo padrão de concentração permitiu o surgimento de setores econômicos que não eram dependentes da escravidão e apoiavam a emancipação como condição de progresso da nação e de construção de uma sociedade moderna. Todo esse processo deteriorou as bases da instituição, assim como sua legitimidade.

Relembrar o contexto da época, os passos e os embates que anteciparam e criaram o cenário para a promulgação da Lei do Ventre Livre permite refletir sobre o contexto atual. Ainda que a Lei do Ventre Livre seja interpretada como uma etapa significativa no longo caminho para a abolição definitiva da escravidão no Brasil, ela também revela outras nuances, que denunciam a lógica de subalternização das vidas negras, algo que está enraizado na sociedade brasileira até os dias atuais. Logo, a liberdade é uma conquista contínua para negros e negras e revigora-se na consciência de que seus corpos personificam a resistência de outrora e agora.

A emissão de um selo comemorativo dos 150 anos de promulgação da Lei do Ventre Livre pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, nesta parceria com o Museu Afro Brasil, permite que os significados e desdobramentos deste evento sejam revisitados e problematizados. A efeméride é, desse modo, atualizada, à luz da contemporaneidade e de pesquisas acadêmicas mais recentes. E, sobretudo, por meio da arte, que permeia e é permeada pelos embates, desafios e tensões da vida em uma sociedade que lida com a herança e as mazelas do passado colonial e escravocrata brasileiro.

Museu Afro Brasil


Detalhes Técnicos

Edital nº 16

Arte: Diego Mouro

Processo de Impressão: ofsete

Papel: cuchê gomado

Bloco com 2 selos

Valor facial: R$ 2,95 cada selo

Tiragem: 10.000 blocos

Área de desenho: 25 x 59mm

Dimensão do selo: 25 x 59mm

Dimensão do bloco: 137 x 85mm

Picotagem: 12 x 11,5

Data de emissão: 28/9/2021

Local de lançamento: São Paulo/SP

Impressão: Casa da Moeda do Brasil



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